domingo, 28 de setembro de 2008

Clarice Lispector - medo da eternidade


Pro pessoal do Rio, o CCBB está com uma exposição sobre a vida e a obra de Clarice Lispector, que faz 30 anos desde que deixou este plano.

A exposição ficará até 5 de outubro de terça a domingo, das 10 às 21 horas com entrada gratuita.

Ainda não fui...volto pra comentar...

...mas deixo aqui uma de suas crônicas pra gente sentir um gostinho de sua obra ...


Medo a eternidade


Jamais esquecerei o meu aflitivo e dramático contato com a eternidade.
Quando eu era muito pequena ainda não tinha provado chicles e mesmo em Recife falava-se pouco deles. Eu nem sabia bem de que espécie de bala ou bombom se tratava. Mesmo o dinheiro que eu tinha não dava para comprar: com o mesmo dinheiro eu lucraria não sei quantas balas.
Afinal minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para a escola me explicou: - Como não acaba? - Parei um instante na rua, perplexa.
- Não acaba nunca, e pronto.
- Eu estava boba: parecia-me ter sido transportada para o reino de histórias de príncipes e fadas. Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que representava o elixir do longo prazer. Examinei-a, quase não podia acreditar no milagre. Eu que, como outras crianças, às vezes tirava da boca uma bala ainda inteira, para chupar depois, só para fazê-la durar mais. E eis-me com aquela coisa cor-de-rosa, de aparência tão inocente, tornando possível o mundo impossível do qual já começara a me dar conta.
- Com delicadeza, terminei afinal pondo o chicle na boca.
- E agora que é que eu faço? - Perguntei para não errar no ritual que certamente deveira haver.
- Agora chupe o chicle para ir gostando do docinho dele, e só depois que passar o gosto você começa a mastigar. E aí mastiga a vida inteira. A menos que você perca, eu já perdi vários.
- Perder a eternidade? Nunca.
O adocicado do chicle era bonzinho, não podia dizer que era ótimo. E, ainda perplexa, encaminhávamo-nos para a escola.
- Acabou-se o docinho. E agora?
- Agora mastigue para sempre.
Assustei-me, não saberia dizer por quê. Comecei a mastigar e em breve tinha na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada. Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita. Na verdade eu não estava gostando do gosto. E a vantagem de ser bala eterna me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante da idéia de eternidade ou de infinito.
Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade. Que só me dava aflição. Enquanto isso, eu mastigava obedientemente, sem parar.
Até que não suportei mais, e, atrevessando o portão da escola, dei um jeito de o chicle mastigado cair no chão de areia.
- Olha só o que me aconteceu! - Disse eu em fingidos espanto e tristeza. - Agora não posso mastigar mais! A bala acabou!
- Já lhe disse - repetiu minha irmã - que ela não acaba nunca. Mas a gente às vezes perde. Até de noite a gente pode ir mastigando, mas para não engolir no sono a gente prega o chicle na cama. Não fique triste, um dia lhe dou outro, e esse você não perderá.
Eu estava envergonhada diante da bondade de minha irmã, envergonhada da mentira que pregara dizendo que o chicle caíra na boca por acaso.
Mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim.


LISPECTOR, Clarice. Medo da eternidade. In: A descoberta do mundo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984. p. 446-8.

5 comentários:

Gabriel Lorenzato disse...

Olá, então você é novata? Vai ficar vicada em postar, há, há, há você vai ver que eu não minto.

Bom, quanto a Calrice, bom ela era muito boa, li um tradução dela, mas não era de tão dela (era uma obra traduzida e não escrita por ela), mas já suas crônicas e a mais conhecida e a que me lembro melhor é aquela em que ela fala da língua portuguesa. Ela fala que a língua portuguesa é fácil de ser falada e difícil de ser escrita. Ela era genial, mas não sou fã de carteirinah dela não.

Um grande beijo e afirmo que quanto mais você postar, mais viciada ficará (ainda mais se receber muitos comentários).

Beijo, blog é interessante e acompanharei o andamento!!!!!

Lucas Oliveira disse...

Clarice Lispector e suas crônicas.
Ela passou nessa crônica toda a inocência de uma criança.

É inacreditável o poder das palavras. Juntas, formam um belo texto que depois de lido, nos passa grandes lições de vida.

Eternidade. Será que nunca acaba mesmo?

Lucas de Oliveira

Babi Mariano disse...

Ela aborda não só essa questão do imaginário infantil....mas essa angústia da eternidade...ou do que pensamos ser eterno...pq tenho minhas dúvidas em relação ao eterno...na verdade nem me é muito familiar!
O texto é lindo mesmo né?
Tb gostei muito...

Lorena Natália disse...

nossa...obrigada pela visita no meu blog...^^
adoro a Clarice Lispector...os contos são sempre tão bons...tão descritivos e tão mágicos...
queria morar no Rio^^
o/
um beeejuu pra vc...adorei o blog!!^^

Pod papo - Pod música disse...

Nossa mente humana é limitada a só aceitar o que tem começo, meio e fim. Não estamos acostumados com a i´deia de eterno, por isso, o eterno nos assusta tanto. Mas eu acredito em eternidade sim!

Beijos!